quinta-feira, outubro 18, 2007

C-I-D-A-D-E




O nascimento da polis se dá por volta dos séculos VIII e VII a.C. Ela surge, enquanto espaço físico-social, provocando grandes alterações na vida social e nas relações humanas. Surge na Grécia, e sua originalidade está na centralização da idéia de praça pública, espaço onde se debatem os problemas de interesse comum. A polis se faz pela autonomia da palavra, não mais a palavra mágica da autonomia dos mitos, palavra dada pelos deuses e, portanto, comum a todos, mas a palavra humana do conflito da discussão e da argumentação. Esse foi uma concepção de cidade que perdurou por muitos anos e ainda está presente, hoje em dia, quando se discute a esfera publica e do direito. Contudo, observa-se também que para esse conceito foram incorporados novos valores como o de cultura.
Pode-se corroborar com essa idéia, também, que tanto a palavra cidade como cultura e homem são conceitos que abarcam a possibilidade constante de mudança, porque eles fazem parte de um discurso reflexivo em que um modifica o outro.
Gostaria também de introduzir nesse discurso um dos significados da palavra cidade para o geógrafo Milton Santos ao escrever A Cidade nos Países Subdesenvolvidos:
"... a cidade é, antes de tudo, definida por suas funções e por um gênero de vida, ou, mais simplesmente, por certa paisagem, que reflete ao mesmo tempo essas funções, esse gênero de vida e os elementos menos visíveis, mas inseparáveis da noção de 'cidade': passado histórico ou forma de civilização, concepção e mentalidade dos habitantes."

O geógrafo nos mostra que as leis e regras presentes em cada cidade são premissas para o seu funcionamento. Cada corpo apesar de possuir um determinado número de organismos necessários à sobrevivência, funciona diferentemente. Cada cidade possui uma combinação de DNA.
O espetáculo O Corpo, o poema do concretista Augusto de Campos e a afirmação de Paul Auster trabalham sob os signos da urbanicidade. Apesar dos três tipos de linguagem artística serem diferentes e existirem combinações de signos díspares, ao serem interpretados e comparados possuem similitudes.
A cidade é um corpo e o corpo é uma cidade. A cidade e o corpo possuem doenças, cânceres, verrugas, sinais, distúrbios, esquizofrenias, anomalias, autonomias, dependências, independências, possuem órgãos, perdem órgãos e possuem etc, porque tanto no Corpo como na Cidade os processos combinatórios são infindáveis até cada sinal vermelho.
Uma primeira correlação que se pode fazer entre o espetáculo O Corpo e o poema de Augusto de Campos é que em O Corpo precisamos envolver as partes para formar o conteúdo do espetáculo. Faz necessário unir as partes para formar o corpo. Esse ponto é reforçado com a trilha de Arnaldo Antunes que inicialmente apresenta os elementos do corpo lentamente e ao decorrer do espetáculo há uma aceleração, como se as partes estivessem se auto-conhecendo e se juntando. Já em Cidade, o entendimento e o reconhecimento do conteúdo acontecem quando há o desmembramento do corpo e em um processo concomitante a união junto aos sufixos cidade/cité/city. Podemos dizer que há um processo dialético entre a legibilidade e a ilegibilidade, assim como nas cidades, em que as pessoas só ganham representação quando estão inseridas.
A escolha da trilha sonora elaborada por Arnaldo Antunes agrega valor ao espetáculo. Esses valores estão arraigados no personagem extremamente urbano desempenhado pelo artista. Em muitas críticas sobre seu trabalho o intitulam com um poeta/performer. Através de sons agudos e de um ciclo vicioso repetem-se as palavras “mão”, “pé”, “mão”, “pé”. No cenário aparecem sinais vermelhos que lembram os sinais vermelhos dos semáforos que ascendem, apagam e se alternam com o amarelo e com o verde. Pare. Atenção. Sigo.
Assim como o espetáculo de dança que é construído e pode ser interpretado a cada momento que os bailarinos se movem ou fazem um gesto diferente, o poema também pode ser interpretado de diferentes formas. Ao falarmos da poesia concreta, devemos levar em consideração que não só as palavras e sua disposição devemos procurar entendê-las, mas também os espaços em branco. Para correlacionar a disposição do poema com a disposição de O Corpo, pode-se trazer ao discurso a idéia de Haroldo de Campos. Segundo ele, nas poesias encontram-se três dimensões de abordagem diferentes: “uma dimensão gráfico-espacial, uma dimensão acústico-oral e uma dimensão conteudística, que se estimulam mutuamente e remetem uma a outra sem cessar, fazendo do poema uma estrutura dinâmica.” Assim funciona o espetáculo O Corpo que ao agregar o valor da trilha de Antunes, nos mostra um processo orgânico e natural das cidades e do sistema dialético “homemcidade”. Tanto o vazio dos espaços do palco quanto o vazio de partes do papel nos falam alguma coisa. As cidades também são assim. O caos urbano em muitos estágios sociais foi representado pelo vazio por causa de catástrofes naturais ou causadas pelo próprio homem como ao lançar a bomba atômica.
A coreografia representa a cidade ao compará-la à estrutura de um corpo humano e ao representar o homem como elemento da cidade. O espetáculo leva a tona também a questão da mecanização e da dependência dos homens pela tecnologia e pelas máquinas. Cada vez fica mais difícil de distinguir se as inovações tecnológicas estão escravizando os homens ou os tornando mais ágeis. Os dançarinos passam essa idéia através de movimentos lentos e sincronizados que parecem marionetes robotizadas.
O nosso corpo, assim como a cidade, é movido por incertezas e uma voracidade. Corre nas nossas veias sangues assim como correm carros nas ruas. Há momentos de nossas vidas que os carros param por falta de combustível e nesses momentos podemos reabastecê-los e há momentos que os carros param.
O ritmo do poema pode ser lido como o ritmo das cidades. Ora desenfreáveis, ora incompreensíveis e ora compreensíveis, mas velozes. De certa forma as cidades existem uma organização assim como no poema, por isso que conseguimos ler suas partes. Dificilmente conseguimos lê-las por completo. Os prefixos são encadeados em ordem alfabética, o que mostra que com um olhar mais apurado, que as cidades exitem certa ordem e que pode-se procurar entender as partes. Trata-se de um poema universal, no sentido de que não fala de uma sociedade brasileira, nem francesa, nem americana simplesmente, mas da complexidade de qualquer cidade. Atrocidade, caducidade, capacidade... voracidade são características de todas cidades. Essa ultima palavra retrata bem como é paradoxal viver nas cidades, ao mesmo tempo em que as construímos, somos engolidos por elas.
Podemos utilizar a palavra fragmentos para as três exposições: O Corpo, Cidade e a afirmação de Paul Auster. Os fragmentos da coreografia, inicialmente, não permitem a compreensão do todo. No poema concreto é necessário fazer uma desconstrução do todo, mesmo sem compreendê-lo, para arquitetar possíveis combinações entre as partes. Assim é também a afirmação de Paul Auster, que mostra a multiplicidade de sentimentos que há numa cidade, que são intraduzíveis diante a complexidade da metrópole. Fica no ar um sentimento de incapacidade e pequenez diante do todo.
Nas cidades somos uma peça de um quebra cabeça, e vemos outras peças que podem se aglutinar, mas não temos a real dimensão do quebra-cabeça completo.
Germano Penalva

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